A mentira que invalida o consentimento sexual

limites à criminalização do estupro mediante fraude

Autores

  • Tatiana Badaró

DOI:

https://doi.org/10.46274/1809-192XRICP2023v8n2p390-424

Palavras-chave:

fraude sexual, estupro, violência sexual mediante fraude, consentimento, autodeterminação sexual

Resumo

A ordem jurídica de países como Alemanha e Reino Unido só permite punir a prática de ato sexual mediante fraude em determinadas situações. Diversamente, o art. 215 do Código Penal brasileiro tem amplitude suficiente para possibilitar a punição sempre que a fraude constitui condição sem a qual o consentimento sexual não teria sido obtido. Ambos os modelos são criticáveis: o primeiro por se orientar, de modo geral, pela diferenciação clássica entre fraude no fato e fraude no incentivo, a qual carece de nitidez e fundamento, e o segundo por alcançar condutas que não deveriam receber a atenção do direito penal. O presente artigo discute e critica esses modelos com o objetivo de investigar o âmbito em que o legislador está, em princípio, autorizado a proibir penalmente a fraude sexual. A partir da compreensão das dimensões negativa e positiva do direito à autodeterminação sexual e do alcance dos deveres que lhes são correlatos, propõe-se interpretar o art. 215 de forma a restringir as hipóteses de incriminação às incluídas em três grupos: 1) fraudes quanto à natureza sexual do ato, quanto ao tipo de ato sexual e quanto à identidade da pessoa com quem o ato sexual é praticado; 2) fraudes que exercem pressão coercitiva ou em que há exploração de relação especial de confiança; e 3) fraudes com potencial de causar dano (físico, patrimonial ou emocional).

Biografia do Autor

Tatiana Badaró

Doutora em Direito (UFMG). Professora (Cedin/MG). Advogada.

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Publicado

12-04-2024

Como Citar

BADARÓ, T. A mentira que invalida o consentimento sexual: limites à criminalização do estupro mediante fraude. Revista do Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte, v. 8, n. 2, p. 390–424, 2024. DOI: 10.46274/1809-192XRICP2023v8n2p390-424. Disponível em: https://ricp.org.br/index.php/revista/article/view/170. Acesso em: 22 dez. 2024.

Edição

Seção

Artigos